Perseguida na ditadura, Áurea Moretti recebe homenagem do Cofen

Presa e torturada em 1969, Áurea sobreviveu, concluiu o curso de Enfermagem e fez história na Saúde

16.04.2015

Enfermeira Áurea Moretti foi homenageada na cerimônia de posse da nova gestão do Cofen
Enfermeira Áurea Moretti foi homenageada na cerimônia de posse da nova gestão do Cofen

Áurea Moretti era estudante de Enfermagem na USP de Ribeirão Preto (SP) e uma das líderes da FALN (Forças Armadas de Libertação Nacional) quando foi presa, em 1969. Interrogatório com choques elétricos, surras e ameaça permanente de estupro tentavam intimidar as mulheres da resistência.

As sessões de tortura incluíam “pau de arara, choque elétrico, e aquele monte de homens gritando, me batendo. Eles passavam a mão, rasgavam a roupa, diziam que iam fazer fila para me estuprar”

“Pensavam que a mulher é o sexo frágil, que não resistiríamos. O juiz Nelson Guimarães [2ª auditoria militar] queria que eu acusasse Vanderley Caixe, Guilherme Simões Gomes, que dissesse que não havia tortura no Brasil”, conta, indignada. “Como é que eu ia dizer isto?”.

Com voz suave, Áurea se emociona com a lembrança, mas faz questão de contar. “É preciso registrar, menina. As novas gerações precisam conhecer a história, para que não se repita”, diz a enfermeira. “Eu vivi para contar”. O relato é corroborado pelo arquivos do extinto Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops), hoje públicos.

Áurea ficou presa por 4 anos e meio. Passou por quartéis, pelo pela masmorra feminina do Presídio Tiradentes, chamada “Torre das Donzelas”, pela penitenciária de Tremembé, até a soltura, sob regime condicional. Sobreviveu para contar e para participar das transformações no Brasil.

Vida após a tortura – A solidariedade dos amigos e o apoio da família foram o alicerce para Áurea reconstruir sua vida. Concluiu o curso de Enfermagem, sob constante vigilância. “Eu precisava me apresentar à Justiça Militar. Não podia mais fazer militância abertamente, né? Estavam se livrando de nós. Diziam que era uma bala só [para nos matar]”.

Formada, não conseguiu trabalho. O estigma da resistência a acompanhava. “Eu só consegui trabalho no Acre, e foi uma coisa linda que me aconteceu. Fui para lá, ajudar a fundar o primeiro curso de Enfermagem, trabalhei com os índios, com sem terra”, conta. “Eu detestava entrar na mata, mas tinha que entrar, né? Construí o meu trabalho assim, em sintonia com a natureza e o povo da terra, formando pessoas das comunidades, fazendo horto medicinal”. Perguntada se conheceu Chico Mendes, mártir da luta dos seringueiros, sorri: “o partido verde naquele tempo era vermelhinho”.

Na década de 1980, Áurea voltou a São Paulo, para dar aulas na PUC-Campinas e, como diz, “levar os filhos dos ricos para conhecer a favela”. Participou dos movimentos de democratização da Saúde que culminariam, com a Constituição de 1988, na criação do Sistema Único de Saúde (SUS).

Perguntada se, hoje, acredita no SUS, Áurea não titubeia. A voz suave vira um “sim” enfático. A enfermeira veterana, que participou da formação de milhares de agentes comunitários de Saúde, afirma que o sistema, generoso, precisa de mais recursos, de qualificação profissional, de estudos que orientem prioridades na Saúde Coletiva. Mas tem orgulho do SUS. Só deixou a Secretaria Municipal de Saúde de Ribeirão Preto, onde atuava como enfermeira, após a idade da aposentadoria compulsória no serviço público.

Homenagem – Áurea Moretti foi umas das personalidades homenageadas no ato de posse da nova gestão do Conselho Federal de Enfermagem (2015-2018) nesta quarta-feira (15/4). “Eu fiquei muito emocionada com essa homenagem do Cofen, era algo que não esperava. Parece que é o verdadeiro reconhecimento pelo que acreditamos, ensinamos, multiplicamos”, diz, emocionada. Caminhamos. Chegamos? Não chegamos? Vamos.

 

 

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