PARECER DE CONSELHEIRO FEDERAL No. 70/2023/PLEN/COFEN


30.08.2023

PARECER DE CONSELHEIRO FEDERAL No. 70/2023/PLEN/COFEN

 

Nutrição parenteral domiciliar. Capacitação de familiar e/ou responsável legal pelo Enfermeiro

 

PROCESSO Nº

00196.003112/2023-77

 

Senhora Presidente,

Colendo Plenário do Cofen,

I. RELATÓRIO

Em atenção à Portaria Cofen n° 884 de 15 de junho de 2023, que designa este Conselheiro Federal para emissão de parecer, que versa sobre a proposta de regulação da Nutrição Parenteral Domiciliar realizada por familiar e/ou responsável legal do paciente (crianças/adolescentes) assistido por programas de saúde do Ministério da Saúde. O processo administrativo epigrafado foi recebido eletronicamente, sendo que das folhas 02 a 363 correspondem ao processo originário que tramitou no Coren-RS, PAD Coren-RS nº 46/19.

Dentre os principais documentos que instrumentalizam o processo, destacam-se:

a) Relatório do Grupo de Trabalho sobre Nutrição Parenteral Domiciliar do Coren-RS, emitido em 19 de março de 2019, fls. 19 a 28, requerendo a autorização para o Enfermeiro capacitar cuidador para realização dos atos de nutrição parenteral domiciliar;

b) Parecer conjunto nº 103/2019/CTAS/CTLN/CTAB/CPAE, o qual aponta pela impossibilidade do cuidador realizar os procedimentos relativos a nutrição parenteral domiciliar (fl. 37 a 43).

c) Parecer Técnico nº 01/2021 do Grupo Técnico de Nutrição Parenteral Domiciliar-RS, limitando a atuação somente a pessoa cuidadora com vínculo familiar e/ou responsável legal, suprimindo a figura genérica do cuidador (fls. 51 a 62).

d) Parecer da CTLN do Cofen (Parecer de Câmara Técnica nº 093/2021 – Cofen /CTLN, fls. 70 a 76;

e) Parecer de Relatora nº 35/2022, Conselheira Lisandra Caixeta Aquino, fls. 82 a 90, exarando posicionamento contrário aos pareceres técnicos do Cofen;

f) Deliberação do Plenário do Cofen pelo não acolhimento do parecer da relatora (fls. 80 e 81) e respectiva Parecer da Relatora nº 035/2022, Conselheira Lisandra Caixeta Aquino, que divergiu do pareceres técnicos do Cofen, fls. 82 a 90;

g) Oficio PRES/COREN-RS/760-22 e 761/22, solicitando informações complementares sobre a nutrição parenteral domiciliar ao Hospital de Clínicas de Porto Alegre e ao Hospital Vila Nova, fls. 85 a 100, e respectivas respostas, fls. 107 a 149;

h) Considerações do Grupo de Trabalho sobre nutrição parenteral domiciliar, fls. 179 a 325;

i) Parecer nº 001/2023, datado de 17 de abril de 2023, fls. 327 a 342, do Grupo de Trabalho sobre nutrição parenteral domiciliar.

É o breve relatório. Passa-se a análise do mérito.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Trata-se de demanda encaminhada para análise com pedido de autorização para o Enfermeiro capacitar familiar e/ou responsável legal para realização de manuseio, instalação e desinstalação de nutrição parenteral no ambiente domiciliar.

O processo originou-se no Coren-RS, em 2019, em face da solicitação efetuada pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e pela Associação Hospitalar Vila Nova em decorrência de situações práticas fruto do Programa de Reabilitação Intestinal de Crianças e Adolescentes (PRICA).

Da documentação apresentada para análise nota-se que a matéria já foi objeto de deliberação anterior por parte do Cofen, sendo que a partir dos apontamentos foram efetuadas as alterações solicitadas e prestados esclarecimentos, apresentados documentos com dados, etapas e resultados do PRICA, bem como indicado evidências técnicas e referências a outros casos análogos autorizados pelo Cofen, conforme a seguir será abordado.

Entre os esclarecimentos prestados consta que:

a) O PRICA-HCPA iniciou as atividades em janeiro de 2014, através de um convênio celebrado com o Fundo Nacional da Saúde do Ministério da Saúde, com o objetivo do desenvolvimento de um projeto de viabilidade técnica de desospitalização de crianças e adolescentes com falência intestinal para uso de nutrição parenteral domiciliar.

b) O PRICA-HCPA possui como base o tratamento realizado por equipe multiprofissional durante as fases de hospitalização e com Nutrição Parenteral (NP) no domicílio. Os profissionais participantes do PRICA-HCPA são gastroenterologistas pediátricos, cirurgiões pediátricos, enfermeiros pediátricos, nutricionistas, nutrólogos, psicólogos, farmacêuticos, assistentes sociais, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e gerentes administrativos. O tratamento hospitalar requer um manejo complexo e por período prolongado para, posteriormente, passar a fase seguinte de desospitalização com a participação dos responsáveis pelo paciente nos cuidados ao paciente em uso de NP no domicílio, sob a supervisão dos profissionais de saúde dos municípios.

c) No documento de fls. 114 foi informado que o acompanhamento dos pacientes que são direcionados aos seus domicílios com indicação de NP domiciliar são realizados pela equipe de saúde da atenção básica municipal responsável pela área onde residem e também pelo hospital do município ou da região abrangente, se necessário. As visitas da equipe de enfermagem do Serviço de Atenção Domiciliar (SAD) ou Atenção Básica (AB) ocorrem diariamente durante a instalação da nutrição parenteral. Os horários das visitas dos Enfermeiros para a instalação da NP ou demais procedimentos são pré acordados com o responsável do paciente, de acordo com o funcionamento da Unidade Básica de Saúde. Alguns municípios seguem o acompanhamento diário, outros optam por seguir duas a três vezes na semana, dependendo do tempo de uso da nutrição parenteral, visto que os pacientes usam a nutrição parenteral por muitos anos. Além da supervisão dos cuidados da nutrição parenteral, os Enfermeiros do SAD ou da AB também encaminham os pacientes ao acompanhamento pediátrico para realização da puericultura ou demais atendimentos para pediatria geral em postos de saúde ou hospital local, onde são atualizados quadro vacinal, passagem de SNE se necessário ou demais atendimentos que incluem cuidados à criança e à família.

d) Em relação ao acompanhamento ambulatorial após a alta hospitalar do paciente no HCPA, o acompanhamento é multiprofissional em um período inicialmente semanal, quinzenal ou mensal, dependendo do desenvolvimento e necessidade da criança, ficando a critério da equipe do PRICA a organização das agendas ambulatoriais, onde pode ser modificada sempre que necessário. Em casos de urgências, os pais ou responsáveis e a equipe de SAD ou AB são orientados a entrar em contato com bip médico e de enfermagem e/ou procurar a Unidade de Emergência Pediátrica do HCPA. Há supervisão 24 horas de Médicos e Enfermeiros do PRICA-HCPA para todos os pacientes em uso de nutrição parenteral domiciliar. A equipe de enfermagem do SAD ou AB, responsáveis pelo paciente e equipe multidisciplinar do PRICA-HCPA trabalham integrados como uma rede de cuidados.

A partir da reanálise efetuada pelo Regional, considerando a relevância do tema, o qual envolve o exercício profissional da enfermagem e a qualidade de vida e sobrevida de pacientes (crianças/adolescentes) e, ainda, a instrumentalização do processo, foi reencaminhada a matéria para novo exame, considerando, também, os paradigmas apresentados em relação aos cuidados domiciliares.

Entre os documentos acostados, cumpre destacar o Parecer nº 001/2023 do Grupo de Trabalho sobre nutrição parenteral do Coren-RS, fls. 327 a 342, que analisou as informações complementares e especificou as etapas do PRICA, apresentando as evidências técnicas em relação a nutrição parenteral domiciliar e os resultados do referido programa, consignado, em síntese, que:

a) Desde a adesão ao PRICA o HCPA, por meio de celebração de convênio com o Ministério da Saúde, atendeu 96 pacientes de todo o País, dos quais 70 foram desospitalizados em uso de nutrição parenteral domiciliar;

b) O PRICA tem por objetivo promover a desospitalização e o respectivo retorno ao domicílio de crianças e adolescentes dependentes de nutrição parenteral que necessitam deste tipo de tratamento por tempo prolongado e por consequência a redução da internação prolongada de pacientes, a melhora dos seus desfechos clínicos e da qualidade de vida do paciente e de seus familiares, assim como a redução de custos hospitalares;

c) No Brasil, há duas instituições cadastradas no Programa PRICA, sendo: Hospital de Clínicas de Porto Alegre (RS) e Hospital Menino Jesus/Sírio Libanês (SP);

d) No PRICA o Enfermeiro, entre outras atribuições, é o responsável pela orientação, supervisão e avaliação das competências familiar no que se refere à instalação, desinstalação, manuseio e cuidados com o cateter;

e) Em decorrência do PRICA o HCPA recebe pacientes segundo a lista de espera nacional para centros de referência em reabilitação intestinal, coordenada pelo Sistema Nacional de Transplante do Ministério da Saúde;

f) No início de 2023 o HCPA tinha 43 pacientes em uso de nutrição parenteral domiciliar e 5 em processo de desospitalização;

g) Os familiares e/ou responsáveis dos pacientes são capacitados e entre suas atividades incluem “tarefas de cuidados com a bolsa de NP, desde o recebimento, acondicionamento e controle de temperatura; instalação de NP; manutenção e manejo do cateter venoso central do tipo Broviac, que inclui a realização de curativos, boas práticas, turbilhonamento e selamento do cateter. Administração de dieta enteral por sonda nasoentérica, sonda nasogástrica ou gastrostomia; controle de glicemia capilar, administração de medicamentos por via oral e enteral; e manipulação de bombas e infusão para instalação de NP;

h) Para os Enfermeiros do SAD ou da AB as tarefas incluem acompanhamento dos responsáveis no processo de instalação de NP ou realização da instalação, se necessário; realizar os mesmos cuidados que os responsáveis do paciente1; instalação e cuidados com sonda Broviac; controle de realização do curativo do cateter; controle de higiene e conservação do ambiente de infusão; educação permanente e continuada com a equipe de enfermagem responsável do PRICA-HCPA;

i) As ações desse programa são executadas por uma equipe multiprofissional de diversas áreas: gastroenterologista pediátrico, cirurgião pediátrico, nutrólogo, nutricionista, enfermeiro especializado, psicólogo, farmacêutico, fonoaudiólogo, fisioterapeuta, assistente social e gerente administrativo;

j) A nutrição parenteral domiciliar é uma modalidade de tratamento consolidada nos países da Europa e da América do Norte;

l) Através do Cofen já foram autorizadas outras técnicas análogas em ambiente domiciliar praticadas por familiar e/ou responsável legal, a exemplo de: diálise peritoneal, ventilação mecânica domiciliar (invasiva ou não invasiva) e aspiração traqueal.

Dos elementos colhidos percebe-se que o PRICA, por um lado, caracteriza-se como uma política pública de saúde, ao mesmo passo que propicia aos pacientes integrantes e seus familiares e/ou responsáveis legais usufruírem de melhores desfechos clínicos e melhora em sua qualidade de vida. Somado a isso, tem-se a narrativa de redução de custos hospitalares relacionado ao paciente, assim como a liberação de leitos que podem ser destinados para outros indivíduos, otimizando a prestação de serviços. No entanto, a questão a ser examinada está relacionada a atuação profissional do Enfermeiro e os aspectos relacionados a legalidade do ato. De modo que, a partir dos esclarecimentos acima, passemos a analisar os aspectos relativos ao exercício profissional do Enfermeiro e se é possível que o mesmo capacite familiar e/ou responsável legal para atos inerentes à nutrição parenteral domiciliar.

No Parecer Técnico nº 01/2023, emitido pelo Grupo de Trabalho, foi destacada a Lei do Exercício Profissional da Enfermagem (Lei nº 7.498/86), as Resoluções Cofen nº 453/2014, 460/2014 e 564/2017 e a Constituição Federal para justificar a possibilidade legal de reconhecimento da prática nutrição parenteral domiciliar, com manuseio (instalação e desinstalação) por familiar/responsável legal devidamente treinado e capacitado, avaliado em processo específico, e, na sequência, acompanhado, orientado e supervisionado por Enfermeiro.

No Parecer de Relator nº 035/2022, de lavra da Conselheira Lisandra Caixeta Aquino, não foram acolhidos os pareceres técnicos nem a possibilidade apontada de que seria possível ao Enfermeiro capacitar familiar e/ou responsável legal para nutrição parenteral domiciliar. Na mesma linha, contudo, para atividades relacionadas à aspiração traqueal, foi emitido o Parecer de Relator nº 07/2023, pelo Conselheiro Márcio Raleigue Abreu de Lima Verde, o qual também opinou pela legalidade do Enfermeiro capacitar o familiar e/ou responsável legal de paciente para fins de realização de procedimento, neste caso, o de aspiração traqueal domiciliar, contrariando, igualmente, o Parecer Técnico nº 081/2021 da CTLN do Cofen. Todavia, neste último caso, o Plenário do Cofen acolheu o parecer do Relator.

No Parecer do Grupo de trabalho do Coren-RS, emitido em 2023, foi ressalvada a questão constitucional, artigo 5º, XIII, que dispõe “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.” e a Lei nº 7.498/86, artigo 11, inciso II, alínea “J”, que estabelece como atribuição do Enfermeiro “a educação visando à melhoria de saúde da população”, bem como as normativas do Cofen, em especial, o artigo 92 do Código de Ética da Enfermagem.

A Resolução Cofen nº 564 de 2017, que aprova o novo Código de Ética dos profissionais de Enfermagem, merece especial destaque, porquanto dispõe entre as proibições “delegar atribuições dos(as) profissionais de enfermagem, previstas na legislação, para acompanhantes e/ou responsáveis pelo paciente”, contudo, excepciona no parágrafo único, manifestando que “o dispositivo no caput não se aplica nos casos da atenção domiciliar para o autocuidado apoiado”.

A partir disso, tem-se que ensinar procedimentos de manuseio, instalação e desinstalação de nutrição parenteral à nível de atenção domiciliar é possível, porquanto é para o autocuidado apoiado, e não para fins de atividade profissional. A capacitação de familiares e/ou responsáveis, considerando todas as etapas do programa PRICA e os respectivos resultados obtidos, até o presente momento, bem como orientações e supervisões do Enfermeiro e da equipe multiprofissional, demonstram que se trata de medida que promove uma assistência mais humanizada.

Nesse contexto, de acordo com o art. 196 da Constituição Federal de 1988, “é um direito de todos e dever do Estado, garantido medicante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Por sua vez, o artigo 227 da Constituição Federal de 1988 dispõe que:

“(…) dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, descriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Ademais, verifica-se que, com a documentação juntada aos autos, as objeções apresentados pelo Plenário do Cofen em relação a eventuais responsabilizações dos profissionais Enfermeiros resta superada, porquanto comprovado o efetivo acompanhamento do paciente em nutrição parenteral domiciliar, consoantes etapas e resultados do PRICA 2.

Destacam-se, também, as disposições do próprio Código de Ética que vedam a delegação de atribuições dos profissionais de enfermagem para acompanhante dos responsáveis pelo paciente, em face da ressalva aos casos de atenção domiciliar para o autocuidado apoiado.

A situação em questão é justamente de atenção domiciliar e de autocuidado. Nesse ponto não se está a discutir a complexidade do autocuidado. Como apresentado, há outros casos por parte do Cofen, reconhecendo à possibilidade de delegação de atividades de enfermagem em âmbito domiciliar, tais como: diálise peritoneal, ventilação mecânica e aspiração traqueal. Portanto, a questão aqui sequer é nova, mas sim de uniformização de entendimentos, de modo a permitir a capacitação do Enfermeiro ao familiar e/ou responsável legal de paciente em nutrição parenteral domiciliar vinculado a programas de saúde do Ministério da Saúde.

Assim, em que pese, em momento anterior, o Plenário do Cofen ter se posicionado de forma desfavorável ao pleito em questão, entendo que foram colacionados novos elementos e documentos, bem como deve ser considerado o fato de que o Plenário do Cofen reformulou seu próprio entendimento, exarando manifestação favorável em casos análogos, a exemplo, do caso recente, relacionado à aspiração traqueal no âmbito domiciliar.

Em razão dos elementos constantes no presente processo pode-se observar que a capacitação de paciente e seus respectivos familiares e/ou responsáveis legais pelo Enfermeiro, não só é legal, como é rotina instituída em diversos serviços de saúde e programas de atenção domiciliar, através de treinamentos teóricos e práticos antes e após a alta hospitalar. A decisão do momento adequado para alta é prerrogativa médica, porém, consoante registros, existe análise multiprofissional quanto às condições dos familiares para execução dos cuidados no domicílio, devendo aqui, ser considerado os direitos fundamentais ao livre exercício profissional e à saúde.

III. CONCLUSÃO

Por todo o exposto, OPINO no sentido de acolher o pleito formulado pelo Coren-RS e autorizar o Enfermeiro a capacitar o familiar e/ou responsável legal do paciente dependente de nutrição parenteral para fins de desospitalização e promoção de nutrição parenteral domiciliar, na hipótese específica dos programas vinculados ao Ministério da Saúde.

GILNEY GUERRA DE MEDEIROS

CONSELHEIRO FEDERAL – 1º TESOUREIRO

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