Quando desinformação gera lucro: como comunidades conspiracionistas monetizam com movimento antivacina

Enfermeiros, técnicos e auxiliares de Enfermagem podem responder processos éticos em caso de difusão de fake news

29.01.2025

Que a mentira causa danos, ninguém duvida. Mas que ela também pode ser altamente lucrativa é uma informação ainda pouco conhecida por quem não conhece os meandros do mercado desregulamentado das redes sociais. Em um mapeamento inédito no Telegram, identificamos uma rede de quase 5 milhões de usuários envolvidos em comunidades públicas e abertas de teorias da conspiração na América Latina e no Caribe. Nessa rede, é possível identificar um modelo de negócio nocivo, que se utiliza da desinformação para promover a venda de soluções milagrosas e remédios falsos, para supostamente curar desde rinite e alergias até autismo, câncer e AIDS.

Disponível para consulta em um painel interativo, os dados das quase duas mil comunidades analisadas somam 55 milhões de mensagens trocadas em uma série temporal de quase uma década (desde maio de 2016 até janeiro de 2025). Dentre os países, o Brasil lidera tanto em número de participantes quanto em volume de conteúdos publicados (veja também a cartilha de divulgação científica sobre os dados do Brasil).

Ao todo, são cerca de 2,5 milhões de usuários nessas comunidades brasileiras, representando em torno de 1% da população do país e pelo menos metade de toda a rede conspiracionista do continente. Além disso, 57% das mensagens circuladas nessas comunidades da América Latina e do Caribe têm origem no Brasil.

Desde grupos antivacinas até terraplanistas, as comunidades conspiracionistas na América Latina e no Caribe abrangem uma ampla gama de narrativas desinformativas, que vão da desinformação científica à disseminação de discursos de ódio e revisionismo histórico.

O mapeamento ainda revela que essas redes não apenas compartilham crenças pseudocientíficas, mas também servem como espaços de mobilização para agendas políticas, propagação de ideologias extremistas e, principalmente, comércio de curas falsas para toda a sorte de doenças.

Entre as categorias analisadas pelo levantamento, destacam-se as comunidades de “medicamentos off label” e “antivacinas”, que juntas somam quase 2 milhões de usuários, impulsionando a comercialização de tratamentos sem comprovação científica (veja também a nota técnica disponibilizada sobre as comunidades de saúde alternativa).

Quando filtramos apenas essas duas comunidades, os mais de 15 milhões de conteúdos somam 21 bilhões de visualizações (21.173.960.800). Além disso, outras métricas também valem o destaque, como o total de 310.294.193 compartilhamentos e de 13.585.601 reações apenas nessas comunidades de saúde alternativa, revelando uma rede engajada.

Detox vacinal e dióxido de cloro (ClO₂)

Uma das principais desinformações encontradas nessas comunidades é sobre um suposto “detox vacinal”, produzido a partir do dióxido de cloro (ClO₂), uma substância utilizada na indústria como desinfetante e branqueador de papel.

Em algumas comunidades, a promessa é que este detox “remove os nanorobôs” que as vacinas teriam inserido no nosso organismo… Em outros, a substância é divulgada como uma espécie de panaceia milagrosa. Frascos de “MMS”, sigla que vem da expressão em inglês “Mineral Miracle Solution”, compostos por clorito de sódio a 28% e um ativador, em geral ácido clorídrico, a 4%, prometem curar desde questões simples como rinite e alergias, até condições complexas como câncer, AIDS e até mesmo o autismo. Há muitos registros de vendas do produto para pais que desejam “prevenir o autismo” e “fortalecer a imunidade” em seus filhos recém-nascidos.

Reprodução de redes sociais, Author provided (no reuse)

Se por um lado empresas que vendem dióxido de cloro como medicamento já foram alvo de notificações do Ministério da Justiça e Segurança Pública, buscando responsabilização; por outro lado, 346.789 mensagens foram identificadas promovendo o dióxido de cloro nas comunidades que integram a base do Telegram. Enquanto algumas mensagens vendem frascos, outras comercializam e-books e cursos online sobre “como produzir o seu detox ideal”, rendendo um alcance acumulado de mais de meio bilhão de visualizações (643.652.345).

Quando observamos os países com maior alcance em conteúdos sobre dióxido de cloro, temos 171 milhões de visualizações em publicações de comunidades da Colômbia; 70 milhões do México; 69 milhões do Brasil; 43 milhões da Argentina e 38 milhões do Peru.

Com um modus operandi escalável, as mensagens sobre o ClO₂ comumente iniciam trazendo algum pânico, como a suposta existência de microchips em vacinas ou uma excessiva patologização do autismo. Em seguida, a solução do dióxido de cloro é revelada como a “verdade oculta”, acompanhada de um link para a compra em sites.

Protocolos de desparasitação e desintoxicação

Após a condenação das divulgadoras científicas do canal “Nunca vi um cientista” por terem dito que parasitas não são a causa do diabetes, anulada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o tema ganhou destaque em rede nacional. No entanto, esse tema já se está presente nas comunidades conspiratórias desde agosto de 2016, totalizando 185.724 menções ao longo dos mais de oito anos anos e quase meio bilhão de alcance (463.637.200 visualizações). Sendo a maioria das visualizações concentrada na Colômbia (104 milhões), seguido do Brasil (73 milhões), Peru (50 milhões), Argentina (43 milhões) e México (38 milhões). Ou seja: os mesmos países do dióxido de cloro se repetem no ranking desinformativo.

Primeiro cria-se um cenário alarmante, ilustrando parasitas e sugerindo que representam uma ameaça invisível. Em seguida, são apresentadas soluções milagrosas, como o exemplo da “prata coloidal” ou do “ouro coloidal”. Por fim, divulga-se o link para a compra dos produtos.

Além de produtos para ingestão oral, os protocolos de “desparasitação” e “desintoxicação” ainda contam com enemas e supositórios, com a promessa de “limpar” o organismo de vermes que inclusive causariam autismo. Em alguns casos, vendem versões “kids” de produtos, buscando cooptar pais ou responsáveis que estejam preocupados com as suas crianças.

Passaportes da vacina

Outro exemplo recorrente são os passaportes vacinais. Quando um membro da comunidade está convencido de que as vacinas são nocivas e adere a tratamentos alternativos, como dióxido de cloro ou desparasitação, surge um dilema: ele pode precisar de um comprovante de vacinação para manter seu emprego ou matricular os filhos na escola.

Diante dessa necessidade, um novo mercado se estabelece: o da falsificação de passaportes. Essa prática, tipificada como crime pelo Código Penal, prospera na medida em que a desinformação antivacina continua a se espalhar — quanto mais indivíduos desacreditam das vacinas, maior a demanda por documentos falsificados.

Em relação aos passaportes vacinais, apenas no Brasil foram identificadas 12.069 mensagens mencionando a compra ou venda nas comunidades conspiratórias, sendo enviadas por 1.470 usuários únicos, potencialmente envolvidos em uma rede criminosa. No que diz respeito ao alcance, pelo menos 7.408.974 usuários visualizaram tais anúncios de passaportes vacinais nas comunidades brasileiras e podem ter tido algum grau de contato com quem realiza a venda.

Desinformação como modelo de negócio

Como vemos, a desinformação não apenas se dissemina como uma narrativa paralela ao consenso científico, mas também é convertida em um modelo de negócio lucrativo. Essas práticas encontram terreno fértil em um ecossistema que explora medos e desconfianças, fazendo com que o movimento antivacina não seja apenas uma expressão de crença ou ideologia, mas se torne um mercado que lucra com a vulnerabilidade.

Assim, um ciclo se estabelece: quanto mais a rede conquistar convertidos para o movimento antivax, mais recursos poderá ter ao vender produtos e serviços ilícitos; quanto mais recurso a rede tiver ao vender tais produtos, mais estrutura poderá ter para conquistar convertidos à rede.

No entanto, compreender a dimensão econômica desse fenômeno não deve nos levar apenas ao repúdio moral, mas também à formulação de políticas públicas mais robustas contra essas práticas. Regulamentar plataformas, ampliar a fiscalização sobre a comercialização de produtos nocivos, rastrear quem lucra com a tragédia alheia e fortalecer a educação midiática são passos fundamentais para desarticular esse ciclo.

Enfermagem: Fake news em Saúde é infração ética 

O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) participa, desde 2020, de campanhas contra a difusão de notícias falsas na Saúde.  Enfermeiros, técnicos e auxiliares de Enfermagem podem responder processos éticos em caso de difusão de fake news. Na linha de frente do atendimento, os profissionais de Enfermagem realizam o primeiro contato com pessoas adoecidas e impactadas pela mentira, tendo importante papel no letramento científico da população

 

 

 

Fonte: Ergon Cugler, publicado originalmente em The Conversation (editada)

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