‘Ainda estou aqui’: filme desperta memórias de uma técnica de Enfermagem que enfrentou a ditadura
Mais do que uma espectadora, Vera Lúcia carrega na própria história as marcas da resistência à ditadura militar
29.01.2025

A técnica de Enfermagem aposentada Vera Lúcia Felipe da Silva, de 86 anos, saiu profundamente emocionada de uma sessão do filme Ainda Estou Aqui, candidato a três prêmios no Oscar (Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz para Fernanda Torres), assistida recentemente na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro.
Dona Vera se comoveu especialmente em momentos marcantes da trama, como quando Eunice Paiva (interpretada por Fernanda Torres) descobre o assassinato de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva (vivido por Selton Mello), e na decisão da protagonista de retornar a São Paulo com os filhos.
Mais do que uma espectadora, Vera Lúcia carrega na própria história as marcas da resistência à ditadura militar. Durante os anos de repressão, entre 1964 e o início da década de 1970, participou ativamente de protestos nas ruas do Rio de Janeiro. Sua arma simbólica contra a repressão eram pequenas bolas de gude, usadas para tentar derrubar os cavalos da cavalaria encarregada de dispersar as manifestações.
“Está no sangue. Se voltarmos a ter uma situação como a de 1964, volto para as ruas”, afirma.
A trajetória de militância vem de família. Seu pai, Manoel Leôncio, admirador de João Goulart e diretor do Sindicato dos Sapateiros do Rio, a levava para reuniões sindicais desde os cinco anos de idade. Já sua avó, moradora de uma residência para funcionários da Reserva do Grajaú, ajudava a esconder sindicalistas perseguidos, enquanto os netos ficavam responsáveis por levar alimentos aos refugiados.
Com a intensificação da repressão, Vera Lúcia precisou recorrer a estratégias para evitar a prisão. Quando abordada em protestos, alegava estar ali por acaso para escapar da detenção. Chegou a passar uma semana fora de casa, sem trocar de roupa, por temer ter sido identificada. Funcionária do Sesc na época, encontrou abrigo no Sindicato dos Comerciários.
“O medo de ser presa e torturada no DOI-Codi era constante. Até hoje, o prédio continua lá, na Tijuca. O risco de desaparecer era uma realidade para todos que participavam das manifestações. As cenas do filme que retratam a tortura trouxeram essas lembranças de volta”, relata.
Além de sua trajetória política e profissional, Vera Lúcia construiu uma família com base no afeto e na solidariedade. Viúva de um motorista de ônibus que já tinha dois filhos de um relacionamento anterior, ela os criou como se fossem seus próprios: Richard e Cíntia, hoje com 46 e 43 anos, respectivamente.
Na última semana, em um encontro familiar, conversou longamente com Tarcísio Lopes, pai da namorada de seu filho. O advogado, hoje com 83 anos, também carrega na memória episódios marcantes da ditadura. Em 1968, recém-chegado do Nordeste para estudar Direito no Rio de Janeiro, frequentava o restaurante Calabouço, onde ocorreu o assassinato do estudante Edson Luís, morto a tiros pela polícia durante uma invasão ao local. Esse evento, entre outros episódios de violência, desencadeou a Passeata dos 100 Mil, um dos maiores atos contra a ditadura, que surpreendentemente não foi reprimido pelas forças militares.
A história de Vera Lúcia reflete o compromisso e a coragem de tantos profissionais da Enfermagem que, além de dedicarem suas vidas ao cuidado do próximo, também estiveram na linha de frente da luta pela democracia e pelos direitos humanos no Brasil.
Fonte: Ascom/Cofen, com informações do jornal O Globo