Brasil representa um terço das mortes de profissionais de Enfermagem por covid-19

País chega a 200 mil mortos e Cofen avalia, em entrevista, avanço da pandemia e medidas necessárias à contenção. Leia a íntegra da reportagem

08.01.2021

Cristiane e Raimundo Lamarão cercados pelos filhos. Ambos enfermeiros, ele morreu de complicações provocadas pela covid-19.

A enfermeira Cristiane Garcia Ferreira Lamarão, 43 anos, chegou em casa após um cansativo plantão no hospital municipal de Porto Velho. “Nós fazíamos três, às vezes quatro entubações de pacientes com covid-19 por turno. Eu terminava exausta”, conta. Antes que ela pudesse trocar de roupa e tomar um demorado banho — “de meia hora para limpar bem e reduzir as chances de contagiar o pessoal de casa”— o caçula de quatro anos correu pelo corredor para abraçá-la. “Eu pensei: ‘vixe, e agora?’. Do nada apareceu meu marido e segurou o pequeno de última hora sabe? Ele o abraçou e falou ‘Temos que esperar a mamãe se limpar.” Raimundo Socorro Lopes Lamarão, 51, também enfermeiro, conhecia os perigos da doença que se alastrava pelo país e que eles se empenhavam em combater. O casal, inclusive, se conheceu em um hospital: “Ele foi meu supervisor no começo”, lembra Cristiane.

Dos mais de 200.000 óbitos pela covid-19 registrados pelo Ministério da Saúde no Brasil até esta quinta-feira, 500 ocorreram enquanto lutavam na linha de frente do combate à doença. Este é o total de enfermeiras, técnicos, auxiliares de enfermagem e obstetrizes que morreram em 2020 e 2021 em decorrência do novo coronavírus —trinta deles apenas em janeiro deste ano, de acordo com dados do Conselho Federal de Enfermagem. Raimundo foi internado no começo de agosto e morreu no dia 10 daquele mês. Deixou cinco filhos. Cristiane também contraiu a doença, mas teve sintomas mais leves. “Ninguém ficou bem desde o início da pandemia. Era uma sensação iminente de estar com covid o tempo todo sabe?”, conta. Ela se lembra do dia em que o marido, já se sentindo debilitado pela doença mas sem conseguir ser admitido em nenhum hospital, pediu: “Me tira daqui, eu não quero morrer em casa.” Ela continua atuando como enfermeira, mas deixou de trabalhar em alas para pacientes com o novo coronavírus. “Não consigo mais entrar lá. Me dá um mal estar muito grande.”

O Brasil responde por um terço do total de mortes pela covid-19 entre os profissionais da categoria, um dado alarmante tendo em vista que sem eles, salvar vidas nos hospitais todos os dias se torna uma tarefa hercúlea. O dado global mais recente sobre letalidade da covid-19 entre profissionais da área foi divulgado em novembro pelo Conselho Internacional da categoria, e dava conta de 1.500 mortos em 44 países —a cifra já deve ter sido superada. “O fato de que o número de enfermeiros e enfermeiras mortos na pandemia seja similar aos que faleceram na I Guerra Mundial é chocante”, afirmou Howard Catton, chefe-executivo da entidade durante a divulgação do relatório de óbitos, fazendo um paralelo entre a atual crise sanitária e um dos conflitos mais violentos da história humana.

O impacto da doença na enfermagem passou por algumas etapas diferentes desde sua chegada ao Brasil. “Durante a fase aguda da pandemia a falta de equipamentos de proteção individual comprometeu muito as equipes de saúde. E quando estes EPIs chegavam, muitas vezes eram materiais de má qualidade e pouca efetividade, que não protegiam”, explica Eduardo Fernando de Souza, 45, coordenador do Comitê Gestor de Crise Covid-19 do Conselho Federal de Enfermagem e enfermeiro de UTI com 25 anos de experiência. Neste período de escassez também perderam a vida muitos trabalhadores da Saúde devido à falta de um protocolo rígido e claro sobre como atuar em hospitais com leitos para covid-19. “Havia muita contaminação na desparamentação dos profissionais [a retirada dos EPIs], uma vez que não era hábito utilizar todos esses equipamentos, como gorro, face shield, avental e máscara N-95”, diz.

Agora, após a primeira onda da pandemia no Brasil, as contaminações e mortes destes profissionais podem ser atribuídas a outros fatores. A exaustão é um deles. Não existe risco zero quando se lida com pacientes infectados, e quanto mais cansadas as equipes —muitas estão atuando desde março sem parar— maior as chances de um deslize. Em 2020, 44.441 enfermeiros, técnicos e auxiliares foram afastados do trabalho e colocados em quarentena após serem infectados pelo novo coronavírus, um número significativo dentro de um universo de pouco mais de 2 milhões de trabalhadores da área. Com a população ignorando medidas básicas de distanciamento social e prevenção à covid-19, os hospitais voltaram a encher no final do ano passado. “Quanto mais paciente de covid-19 nos hospitais, maior o risco para o profissional de saúde. Não tem jeito”, diz Souza.

As mortes e afastamentos pela doença entre profissionais de Saúde fomentaram o mercado de vagas na área, com um perigoso efeito colateral para os profissionais. “Muita gente nova foi contratada, existe uma demanda enorme por gente da enfermagem”, afirma Souza. Os novatos, porém, não contam com a experiência dos veteranos que já estão na linha de frente desde março, o que pode trazer riscos adicionais para eles, desacostumados com todos os procedimentos e medidas necessárias de auto-cuidado.

Indagado se 2020 foi o ano mais letal para a enfermagem brasileira, Souza pondera. “O que está nos assustando hoje no Cofen é que estamos no sétimo dia do ano de 2021 e já tivemos 30 novos óbitos, e isso vai aumentar”, diz. Segundo ele, as trocas de gestões municipais, com novos prefeitos e secretários de Saúde assumindo seus cargos e por vezes trocando peças-chave da gestão, pode provocar ruídos nas medidas de prevenção e monitoramento da doença nas equipes ?além do sempre presente receio de que alguns políticos tentam “subdimensionar” o número de mortes de seus servidores. Por fim, o enfermeiro afirma: “Olha, 2020 foi ruim, não dá para negar isso. Mas se não houver conscientização da população e dos gestores e profissionais da Saúde, 2021 será ainda pior para a enfermagem brasileira”.

 

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