Fiocruz debate interesses privados na saúde mental

As contradições que perseguem a efetividade da Política de Saúde Mental no Brasil

04.12.2017

A Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) está consolidada, porém estagnada: o diagnóstico é feito por militantes da Reforma Psiquiátrica no Brasil que identificam investimento insuficiente em serviços de atenção psicossocial, motor da luta antimanicomial, e o recrudescimento de iniciativas como as comunidades terapêuticas e os leitos em hospitais psiquiátricos. “Não houve investimento efetivo do Estado na construção de uma rede substitutiva, nem na parte específica de serviços. Contraditoriamente, duas áreas fundamentais de mudança do modelo assistencial no Brasil, que são a atenção psicossocial e a saúde da família, estão precarizadas em vários aspectos”, descreve Paulo Amarante, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e membro do Grupo de Trabalho da Saúde Mental da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

Já para Leonardo Vidal Mattos, coordenador do Grupo de Pesquisa e Documentação sobre o Empresariamento na Saúde da UFRJ, mais do que uma estagnação, o que está acontecendo é uma mudança no caminho do dinheiro público nessa área. Isso porque, segundo ele, com foco no tratamento de usuários de álcool e outras drogas, a saúde mental tornou-se um negócio lucrativo. “Eu acho que está mais para retrocesso do que estagnação. Se analisarmos a política pública que defendemos, da reforma psiquiátrica, de fato, há uma estagnação, mas se olharmos para um panorama mais amplo, considerando o avanço das comunidades terapêuticas, eu acho que pode se dizer que é um retrocesso”, explica Mattos.

Das origens aos dias atuais – Amarante explica que a proposta da Reforma Psiquiátrica era substituir o modelo asilar, de internação e exclusão social, e criar uma rede de serviços territoriais de atenção psicossocial, visando à integração da pessoa que sofre de transtornos mentais à comunidade, garantindo a cidadania e o respeito aos seus direitos e individualidade. “Não era apenas uma questão de humanizar o modelo ou de mudá-lo. A Reforma Psiquiátrica buscou refletir sobre o sujeito com transtorno mental e criar outras estratégias, que o incluísse na sociedade”, explica Amarante, fazendo uma analogia com o tema da escravidão: “Não bastou somente abolir a escravatura. Tirar os negros da senzala significaria criar alternativas para que, ao saírem de uma posição de desvantagem social, tivessem efetivamente possibilidades de inserção na sociedade”.

Fruto de um processo histórico de formulação crítica e prática, que questionou o modelo clássico e o paradigma da psiquiatria no fim da década de 1970, no contexto político de luta pela democratização, a reforma psiquiátrica hoje enfrenta algumas dificuldades, segundo Amarante. Uma delas é a carência de centros de Atenção Psicossocial (CAPS), especialmente o de tipo 3, dedicado a pessoas em intenso sofrimento psíquico decorrente de transtornos mentais graves e persistentes, incluindo aqueles relacionados ao uso de substâncias psicoativas, e outras situações clínicas que impossibilitem estabelecer laços sociais e realizar projetos de vida, em municípios ou regiões de saúde com população acima de 150 mil habitantes. “Com o processo de fechamento gradativo dos manicômios que se iniciou com a Reforma Psiquiátrica, a lógica seria investir primeiramente no CAPS 3, porém foi priorizada a criação de CAPS 1”, informa, referindo-se ao dispositivo que integra a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), mas que, diferente do CAPS 3, não prevê internação temporária.

Para o Ministério da Saúde, ao contrário, o cenário é de investimento na área. Segundo a pasta, no Brasil, existem atualmente 2.466 CAPS, o que representa um crescimento de 836% em relação a 2001 quando havia apenas 295 unidades. Além dos CAPS, a Rede de Atenção Psicossocial conta com 35 unidades de acolhimento de adultos no país e 22 infantis e 495 residências terapêuticas em espaços urbanos, criadas para responder às necessidades de moradia. “Esses números são muitos tímidos”, contrapõe Roberto Tykanori, psiquiatra e ex-coordenador de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da pasta em gestões do PT. A exemplo de Amarante, Tykanori reconhece um avanço da RAPS desde 2002, seguido por uma estagnação abrupta a partir de 2016. “Isso se deve a um desmonte, literalmente, da máquina pública”, resume.

Investimentos congelados – Em 2015, ainda no governo Dilma Rousseff, começaram a aparecer os primeiros indícios de que a PNSM estava sob ameaça. Tykanori, reconhecido pela sua militância na Reforma Psiquiátrica desde os anos 1980, foi substituído por Valencius Wurch. Entre os anos de 1993 e 1998, ele foi diretor da Casa de Saúde Doutor Eiras, em Paracambi (RJ), maior manicômio da América Latina, denunciado por violações dos direitos humanos, como o uso de eletrochoques, alimentação escassa e água não potável, fatos que provocavam óbitos com frequência. A indicação ao cargo provocou uma grande reação dos militantes da luta antimanicomial, culminando no Movimento Fora Valencius do Distrito Federal (DF) – o então coordenador só foi exonerado em maio de 2016, pelo ministro da Saúde substituto à época, José Agenor Álvares. “Eu não tinha ideia do quanto a substituição na Coordenação de Saúde Mental já indicava o desmonte da política pública. Na época, ainda pensava que era só um problema de acomodação política”, observa Tykanori.

Rosana Onocko Campos, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do Grupo Temático de Saúde Mental da Abrasco, confirma o congelamento dos investimentos na saúde mental, com base no primeiro Boletim Epidemiológico de Tentativas e Óbitos por Suicídio no Brasil, apresentado pelo Ministério da Saúde em setembro deste ano. O relatório aponta as altas taxas de suicídio entre idosos com mais de 70 anos e chama atenção ainda para o alto índice entre jovens, principalmente homens e indígenas. O mesmo relatório mostra que os serviços de assistência psicossocial têm papel fundamental na prevenção do suicídio, já que nos locais onde existem os CAPS o risco de suicídio é 14% menor. Ela observa apenas um tímido crescimento dos CAPS-AD, destinado a pessoas que apresentam intenso sofrimento psíquico decorrente do uso de crack, álcool e outras drogas. “Apesar da comprovação da importância desses centros, sabemos que há milhares de cidades no Brasil que não têm cobertura. Isso se deve ao fato de os recursos estarem sendo transferidos para as comunidades terapêuticas”, denuncia. E é aqui que estagnação e retrocesso se encontram.

Nada é por acaso – Foi como parte da política de combate às drogas que as comunidades terapêuticas passaram a receber recursos da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), subordinada ao Ministério da Justiça, especialmente a partir de 2015. Além disso, a Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde editou em outubro de 2016 a Portaria 1.482, que determina a inclusão dessas entidades no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). A portaria surgiu dois meses após a Justiça acatar pedido do Ministério Público Federal e suspender os efeitos de uma resolução do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) que regulamentava o funcionamento das comunidades terapêuticas.

Pelo CNES, as comunidades devem ser definidas como “equipamentos de saúde” e atender a normas específicas, entre elas a Lei da Reforma Psiquiátrica de 2001, que regula as internações psiquiátricas e promove mudanças no modelo assistencial aos pacientes portadores de sofrimento mental, destacando-se o processo de desospitalização implementado através RAPS. Essas entidades surgem na década de 1960, sob o propósito de oferecer tratamento a usuários de drogas. Como fiscalização insuficiente, tornaram-se uma “versão moderna dos manicômios”, como define a vice-presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e presidente da Comissão Intersetorial de Saúde Mental do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Ana Sandra Fernandes Nóbrega. Uma inspeção nacional deflagrada sob sigilo pelo Ministério Público Federal (MPF), pelo Mecanismo Nacional de Prevenção à Tortura (MNPCT) e pelo CFP em 31 comunidades terapêuticas, nos dia 16 e 17 de outubro de 2017, atestou problemas como internações forçadas e não documentadas, instalações precárias e péssimas condições de higiene, suspeita de trabalhos forçados e até mesmo indícios de sequestro e cárcere privado com ausência da família – a relação com os nomes das intuições será divulgada em um relatório nos próximos meses. “Além da privação de liberdade, porque muitas pessoas não têm a escolha de saírem dali na hora que quiserem, foram identificadas várias situações de violação de direitos humanos”, antecipa Ana Sandra.

Mas se não se enquadram como serviços de saúde, indo na contramão da Política Nacional de Saúde Mental, como essas entidades conseguem recursos públicos e crescem em número a cada ano? Para Paulo Amarante, a resposta pode ser encontrada no lobby feito pelas bancadas religiosas no Congresso Nacional. “As igrejas com seus poderes financeiro, econômico e ideológico incidem diretamente sobre o poder político que as representam. As comunidades terapêuticas são parte de um processo que se dá por meio de liberação de emendas parlamentares”, afirma Amarante.

Esse processo, segundo o pesquisador Leonardo Mattos, foi iniciado em 2009 com a criação da Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social (Cebas) – desde então, a obtenção do certificado de filantropia virou pauta das comunidades terapêuticas –, seguida em 2011, da mudança na Resolução da Anvisa (RDC 29/201), que dispõe sobre os requisitos de segurança sanitária para o funcionamento de instituições que prestem serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativa, permitindo a participação das entidades ativamente. Na sequência, em 2013, o Planalto passou a pressionar a Senad para liberar recursos para as comunidades terapêuticas na esteira do plano ‘Crack, é possível vencer’. A iniciativa, lançada em 2011, envolveu os ministérios da Saúde, Justiça, Educação, Desenvolvimento Social e Combate à Fome e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. A medida recebeu apoio do então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, sob alegação de que as entidades eram responsáveis por 80% do atendimento a dependentes e não poderiam ser ignoradas na rede de atendimento.

Ainda em 2013, Vitore André Zílio Maximiano, ex 2º subdefensor público-geral do Estado de São Paulo assume a Senad. “Desde que assumiu a função, Maximiano demonstrou ser possível convencer as comunidades terapêuticas e sua bancada parlamentar de que a parceria proposta pela então ministra da Casa Civil Gleisi Hoffman era real. Ele disse claramente o que iria fazer e fez: por meio de contratos e convênios, destinou uma expressiva verba para estas entidades”, revela Mattos. O lobby pela regulamentação da atividade resultou no lançamento da Frente Parlamentar em Defesa das Comunidades Terapêuticas, em 2015, e na aprovação do marco regulatório pelo Conad. “Em 2016, Ricardo Barros entra como ministro da saúde e autoriza depois de outubro a concessão da nova regulamentação para obtenção e renovação dos certificados, o Cebas, para as comunidades terapêuticas”, acrescenta Mattos.
O ano de 2016 se destaca também para as comunidades terapêuticas pelo lançamento do Plano ‘Progredir’, da gestão Michel Temer, que prevê ações do governo federal para gerar emprego e renda e promover a autonomia das pessoas inscritas no Cadastro Único e dos beneficiários do Programa Bolsa Família. “Parece ter alguma relação, não está muito claro ainda. Mas representantes das comunidades terapêuticas estiverem presentes e em defesa do plano”, reflete Mattos.

O poder da organização – Em 2012, a criação da Confederação Nacional de Comunidades Terapêuticas (Confecnat) – liderada pela Federação Norte e Nordeste de Comunidades Terapêuticas (Fennoct), Cruz Azul No Brasil, Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (Febract), Federação das Comunidades Terapêuticas Evangélicas do Brasil (Feteb) e Obra Social Nossa Senhora Da Gloria Fazenda Esperança (Fazendas Esperança) – marca o recrudescimento das comunidades terapêuticas sobre o setor público. Na lista de conquistas da Confecnat estão: audiências com os ministros da Saúde, Justiça e Casa Civil para reconhecimento e financiamento das comunidade terapêuticas; audiência com a ex-presidente Dilma Rousseff, que se comprometeu em apoiar o trabalho das comunidades terapêuticas; a revisão e a alteração da legislação que regulamenta as instituições, com a promulgação da Resolução da Diretora Colegiada (RDC 029 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA); o lançamento do Edital de Financiamento de Projetos de Reinserção Social para as Comunidades Terapêuticas pelo Ministério da Saúde; o Censo (mapeamento) das Comunidades Terapêuticas do Brasil; o lançamento do Edital de Financiamento de Vagas em Comunidades Terapêuticas pela Senad; e a inserção da modalidade de atendimento de Comunidade Terapêutica no Projeto de Lei 7.663/2010, aprovado na Câmara dos Deputados, que altera a Lei Sobre Drogas (11.343/2006). “Isso comprovaria um avanço das propostas conservadores sobre o setor público, e não uma estagnação da Política de Saúde Mental”, observa Leonardo Mattos.

Egon Schlüter, presidente da Confenact e secretário-geral da Cruz Azul no Brasil – entidade filantrópica católica que oferece serviço de atendimento à dependentes de drogas e ainda presta assessoria e apoio às comunidades terapêuticas, explica que o objetivo de criar a Confederação foi ter uma representação única nos espaços de discussão e que a agenda principal do grupo é retomar debates sobre a regulamentação das comunidades terapêuticas. “O marco regulatório foi suspenso sem uma análise do mérito, mas tendo como pano de fundo segmentos que, historicamente, são contra o trabalho das entidades do terceiro setor. Foram motivados por conselhos profissionais, Conselho Federal de Psicologia e Conselho Federal de Serviço Social, o pessoal da antropologia, que durante a construção do marco regulatório sempre se manifestaram contra”, argumenta. Segundo ele, esses segmentos não entenderem o trabalho das comunidades terapêuticas como serviço de tratamento e acolhimento. “Estamos articulando junto ao Congresso Nacional uma lei federal que regulamente o serviço de comunidade terapêutica, para que tenhamos uma legislação específica para o nosso modelo e assim não nos confundam com as clínicas que fazem tratamento involuntário”, anuncia.

Para Schlüter, as comunidades terapêuticas implicam serviços de atendimentos residencial e psicossocial. “Não somos a volta dos manicômios. Nós somos, justamente, uma modalidade que vem como alternativa aos manicômios”, defende. Se por um lado ele admite existir entidades que se denominam ‘comunidades terapêuticas’, mas que praticam agressão física, psicológica, maus tratos e cárcere privado, por outro defende a importância de uma rede de comunidades terapêuticas com mais de 20 anos de atuação e que é referência internacional nessa modalidade. “Uma legislação federal é justamente para nos dar ferramentas enquanto federações e confederações de monitorar e fiscalizar o atendimento. Além disso, um serviço para ser financiado com recursos públicos precisa de regulamentação”, reforça. Ele sugere ainda a aprovação do Projeto de Lei da Câmara 037/2013 do deputado Osmar Terra (PMDB), que traz um capítulo sobre a atuação das comunidades terapêuticas. “Apesar de curto, é um texto bastante consistente e objetivo. Se aprovado, já teríamos uma lei federal que daria uma regulamentação mínima às comunidades terapêuticas”, enseja.

Em relação ao Cebas e à inclusão no CNES, Egon Schlüter considera que as proposições foram precipitadas. “Não somos um serviço de natureza clínica médica hospitalar, e nunca seremos”, sentencia. Ele avalia que a decisão de associar a obtenção do Certificado de Entidade Beneficente e Assistente Social ao cadastramento no CNES foi unilateral. “Nós sempre pleiteávamos um registro junto à Saúde, ou seja, um CNES específico para a nossa modalidade, sem uma natureza clínica-médica”, explica, acrescentando que o estatuto da Confenact está sofrendo alterações para ampliar as filiações das federações e associações estaduais de comunidades terapêuticas.

O financiamento por recursos públicos também está na pauta da Confederação. Somente a Senad financia quatro mil vagas em comunidades terapêuticas. “Mas ainda é pouco ao compararmos com as 80 mil vagas que são oferecidas pelas mais de duas mil comunidades terapêuticas que hoje existem no Brasil”, argumenta Egon Schlüter. Segundo o presidente da Confenact, o trabalho de mobilização realizado pela entidade pela regulamentação das comunidades terapêuticas tem como focos a busca de um financiamento público continuado e a inserção das instituições de atendimento na política pública. “Não se trata, neste caso, de explorar o mercado, já que a Confenact é composta por federações sem fins lucrativos. Somos uma modalidade voluntária, um movimento político apartidário, tanto que as pessoas que integram a diretoria da Confederação não podem ocupar um cargo público nem estar concorrendo ou ocupando um cargo eletivo”, avalia ele.

Para Leonardo Mattos, esses objetivos e metas da Cofenact comprovam o retrocesso na PNSM, uma vez que introduzem as entidades religiosas na política de saúde oficialmente. Essa influência da religião sobre as decisões políticas pode ser confirmada por um estudo promovido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que revela que das 2 mil comunidades terapêuticas do país, 82,2% são ligadas a alguma religião. A espiritualidade é a principal prática terapêutica (95,6%), mas 55% aplicam remédios nos internos. “Os interesses conservadores estão associados ao interesse mercadológico. Não se trata de algo meramente empresarial ou meramente religioso, mas sim de uma associação perigosa entre religião e ação mercantil”, define.

Disputa de leitos – Além de interesses econômicos e religiosos, os princípios da Reforma Psiquiátrica também são fragilizados por pautas corporativas. Um dos exemplos é a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que defende uma reforma dos hospitais psiquiátricos e ampliação dos leitos. “Existe a defesa de que esses hospitais sejam renovados e que garantam a soberania do ato médico, o que não ocorre dentro dos hospitais gerais e CAPS”, explica Pilar Belmonte, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Porém, isso vai de encontro aos princípios da Reforma Psiquiátrica, que prevê a internação apenas em casos que o paciente esteja em crise.

A discussão em torno da necessidade de expansão de leitos de saúde mental ganhou destaque depois que um levantamento feito pelo Ministério da Saúde (MS), apresentado pela Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas à Comissão Intergestores Tripartite (CIT) em 31 de agosto e ao Conselho Nacional de Saúde (CNS) em 14 de setembro, evidenciando problemas como subnotificação, má gestão de recursos destinados a obras e baixa ocupação de leitos. De acordo com os dados divulgados, que teriam sido gerados por um novo sistema de monitoramento, a taxa de ocupação dos leitos de saúde mental nos hospitais gerais é inferior a 15%, quando na avaliação do MS deveria ser de 80%.

O panorama implicou a criação de um Grupo de Trabalho para aprimorar o controle e o modelo de financiamento da política de Saúde Mental em todo o país e orientação do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) para retomar o debate sobre a ampliação dos leitos em hospitais psiquiátricos. Para o Conselho Federal de Psicologia (CFP), no entanto, trata-se de mais uma tentativa de apresentar como solução para os problemas do SUS o incentivo aos leitos nos hospitais psiquiátricos da rede privada de saúde. “Tem acontecido um movimento que é bem peculiar de desqualificação total da Rede de Atenção Psicossocial. Dizem que não funciona, sem apresentar uma proposta substitutiva”, avalia Ana Sandra, questionando se não seria de interesse exclusivamente mercadológico. “Isso não seria de se estranhar em face do avanço do neoliberalismo em nossa sociedade capitalista”, observa. Em nota pela defesa dos hospitais psiquiátricos, a ABP e o Conselho Federal de Medicina (CFM) elencam 12 problemas da assistência psiquiátrica no Brasil. “Uma taxa de ocupação tão baixa indica que estes leitos não existem, são fictícios. Em nenhum país do mundo, leitos psiquiátricos em hospitais gerais foram ou são úteis. O hospital especializado em psiquiatria e o hospital geral são diferentes até na arquitetura”, argumenta o psiquiatra Salomão Rodrigues Filho, associado à ABP. Segundo ele, o leito psiquiátrico tem mais espaço físico para os pacientes fora dos quartos e isso é importante para o paciente de saúde mental. Já os hospitais gerais valorizariam mais o espaço do quarto, adequado para pacientes acometidos por doença física. “Como o doente mental permanece muito pouco no leito, quando internado em hospital geral ele incomoda os demais pacientes e, por isso, esses leitos são utilizados por pacientes psiquiátricos passíveis de tratamento ambulatorial ou não são utilizados”, justifica.

Segundo a ABP, a existência de leitos psiquiátricos de boa qualidade é bem-vinda em qualquer país do mundo. E lista: “Na Inglaterra, são 0,58 leitos psiquiátricos; nos Estados Unidos, 0,95 leitos psiquiátricos; no Canadá, 1,90 leitos psiquiátricos; e no Brasil, apenas 0,18 leitos psiquiátricos por mil habitantes”. Ele considera que a proposta de reduzir leitos psiquiátricos e excluir o médico psiquiatra da assistência ao doente mental somente é defendida por “militantes ideológicos da desassistência ao doente mental”. “Esses militantes partem de uma falsa premissa ‘nicaraguense’ de que os pacientes psiquiátricos não são doentes e sim diferentes, por isso não precisam de tratamento e sim de cuidados. Desta forma, negam o extraordinário avanço do conhecimento científico na área e o formidável benefício que os fármacos propiciam aos doentes mentais”, diz.

A ABP argumenta ainda que comunidades terapêuticas só foram incluídas pelo governo no Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas (PEAD 2009-2011) porque não há leitos psiquiátricos disponíveis. “As comunidades terapêuticas não são médicas. Isso significa retrocesso, uma vez que elas retornam à época da psiquiatria religiosa e policial, abandonando a psiquiatria científica, excluindo o médico psiquiatra do sistema assistencial. Elas se proliferam e ocupam um espaço que o governo brasileiro negligenciou”, reprova Salomão, alegando que a internação hospitalar de doentes mentais não fere a Lei 10.216/2001. “Pelo contrário, o artigo 6º da lei já diz que a internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos, normatiza de forma correta a internação hospitalar psiquiátrica. O termo manicômio etimologicamente é correto, mas no Brasil foi obstaculizado”, orienta.

Em resposta à ABP e ao CFM, o Ministério Público Federal (MPF) divulgou uma nota que rebate cada ponto exposto pelas entidades. “A divulgação da taxa de ocupação de leitos de saúde mental em hospitais gerais, por si só, sem investigação de sua causa, não traz o caminho da solução”, escreve. Para o MPF, uma das possíveis causas desse cenário é a falha no encaminhamento ao serviço, diante da ausência de centrais de regulação do acesso em todas as regiões de saúde. “De mais a mais, a diminuição das internações em leitos de saúde mental [em hospitais gerais] é desejável, pois é dado indicativo do respeito ao direito do paciente de manter sua vida livre e autônoma, pela oferta suficiente e atenção adequada na rede extra-hospitalar. Nenhuma política em saúde mental pode se centrar no aumento do acesso a internações, em hospitais psiquiátricos ou comunidades terapêuticas, por evidente descumprimento das leis que protegem as pessoas com transtorno mental”, analisa o Ministério.

Há, porém, uma contradição: “Se no hospital geral, que prevê também leitos para a psiquiatria, não há uma superlotação, por que nos hospitais privados faltam vagas? Será que eles ficam mantendo essas pessoas internadas para poder garantir o pagamento do uso do leito?”, questiona Ana Sandra. Uma das respostas para a pergunta pode residir no fato que, apesar de ter fechado mais de 60 mil leitos com a Reforma Psiquiátrica, o Brasil não conseguiu abrir um campo substitutivo com outras possibilidades de cuidado. “A rede privada pega essa ausência do Estado. Os donos de hospitais desejam a volta do parque manicomial, que aumente o número de leitos, só que custeado pelo SUS. Ou seja, o que se quer é uma rede grande de hospitais conveniados pagos pelo SUS, com o mínimo possível de regulação”, conclui Paulo Amarante.

Para Pilar Belmonte, os dados mostram que, de fato, é preciso uma mudança na forma de pagamento dos leitos. Hoje, segundo ela, o Ministério paga um valor fixo para os hospitais gerais, independentemente de os leitos estarem ou não ocupados, o que acaba desincentivando que eles sejam destinados para pacientes de saúde mental. Já sobre os hospitais psiquiátricos, ela é categórica: “O que temos que fazer é reduzir esses leitos até que eles sejam extintos o quanto antes”, defende. Ela explica que um leito em hospital geral e, mais ainda, nos Centros de Atenção Psicossocial que preveem internação (CAPS 3) é muito mais eficaz. “Essas instituições não trabalham sob a lógica do encarceramento. O princípio delas é atender o paciente em sua integralidade, diferentemente do velho modelo do hospital psiquiátrico”.

O reforço da dose para cura gay – O tema gerou grande polêmica em todo país e fora dele também. Em 15 de setembro, o juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara do Distrito Federal, acatou parcialmente uma liminar que, na prática, torna legalmente possível que psicólogos ofereçam terapias de reversão sexual, popularmente chamadas de ‘cura gay’. Trata-se, neste caso, do resultado de uma ação popular movida contra o Conselho Federal de Psicologia (CFP) por Rozangela Alves Justino, que pedia a suspensão da Resolução 01/99 do CFP, que proíbe a oferta desse tipo de tratamento. Psicóloga de formação e missionária, como define em seu blog, seu registro profissional foi cassado em 2009 porque ela oferecia pseudoterapias para curar a homossexualidade masculina e feminina. A isso se soma o fato de que, desde junho de 2016, Rozangela tem um cargo no gabinete do deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) na Câmara – que é ligado ao pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo.

Professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), a psicóloga Pilar Belmonte critica a tentativa de resgate da patologização da homossexualidade, um conceito excluído pela Organização Mundial da Saúde em 1990.
Ela ainda lembra que, pelo caminho, surgiram outras tentativas nesse sentido, como foi o caso do projeto de lei (PL) 717/2003, do deputado João Campos (GO), na época no PSDB, que previa a criação pelo governo estadual – ou seja, com financiamento público – de um programa de auxílio às pessoas que, voluntariamente, optassem por tentar deixar de ser homossexual. O PL não foi à frente graças à mobilização de profissionais da Saúde, das Ciências Sociais e do Direito que enviaram na ocasião à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) um abaixo-assinado de repúdio. O arquivamento foi pedido pelo próprio João Campos, que, na época, foi pressionado pelo PSDB. Atualmente, João Campos, da Igreja Assembleia de Deus, está no PRB.

Tramita ainda na Câmara um projeto de lei que busca permitir esse tipo de “tratamento” por parte de psicólogos sem que esses sejam punidos. A proposta em discussão é o PL 4.931 de 2016, apresentado por Ezequiel Teixeira (PTN-RJ). O texto propõe a autorização da aplicação de uma série de terapias com o objetivo de “auxiliar a mudança da orientação sexual, deixando o paciente de ser homossexual para ser heterossexual, desde que corresponda ao seu desejo”. “Esse deputado é o mesmo que, quando secretário de Assistência Social e Direitos Humanos no governo do Rio de Janeiro de [Luiz Fernando] Pezão, foi demitido após comparar a homossexualidade à aids e ao câncer, em uma entrevista na qual defendeu a cura gay”, conta Pilar . Para a pesquisadora, esses projetos têm algo em comum: “Os deputados que os apresentaram são pastores, de diferentes cultos, e tentam vincular suas propostas a algum grau de cientificidade”. E acrescenta, com ironia: “O que não é verdade e possível de ser observada na primeira leitura superficial, pois se fosse possível a ‘conversão’ deveriam oferecer o tratamento não somente para quem quer deixar de ser gay para voltar a ser hetero, mas também para quem apesar de ‘ainda hetero’, tem desejos homoeróticos e precisa de apoio para mudar sua orientação sexual, de hetero para homo, o que não é o caso”.

Coincidentemente ou não, o atual projeto da ‘cura gay’ está na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados aguardando o parecer do relator deputado Diego Garcia (PHS-PR), o mesmo que, em 2015, relatou o Estatuto da Família, no qual definiu a família como a união entre homem e mulher por meio de casamento ou união estável, desconsiderando todos os outros arranjos já existentes em nossa sociedade. “O conservadorismo revela-se como terreno fértil para que essas propostas ressurjam. Isso faz com que os religiosos se sintam ainda mais à vontade para misturar política e religião e defender seus valores individuais em propostas que afetam todo um coletivo”, observa Pilar.

Diferente do que vimos ao longo desta reportagem, Pilar não acredita que essas iniciativas específicas sejam motivadas por interesses empresariais.“Prefiro achar que não é disso que se trata quando se apresenta uma proposta de ‘cura gay’, mas sim que há um embate entre a dimensão da escolha, incluindo neste caso a orientação sexual, e o caráter patológico da homossexualidade, enviesado pelas questões morais e religiosas, por vezes travestidas de científicas”.

Segundo ela, como consequências imediatas estão o maior preconceito social e a produção individual do sofrimento, já que o que entra em jogo é o embate entre a busca pelo sujeito de seu desejo e os constrangimentos de ordem sociocultural. “Qualquer proposta, projeto, decreto sobre cura gay é uma violação dos direitos humanos sem qualquer fundamento científico”, sentencia.

Enfermagem e Saúde Mental – A Enfermagem tem um papel essencial no cuidado e assistência psiquiátrica. Resistir ao retrocesso na assistência à Saúde Mental e promover sua inclusão na Atenção Básica são compromissos assumidos pelos participantes do Encontro Latinoamericano de Saúde Mental, realizado em novembro, durante o 20º Congresso Brasileiro dos Conselhos de Enfermagem, no Rio de Janeiro. Confira as proposições pactuadas no encontro.

O encontro reafirmou a relação inseparável entre física e mental, parte da integralidade. “Todo problema de saúde é também, e sempre – mental. Toda saúde mental é também, e sempre – produção de saúde”, afirmou a conselheira federal Dorisdaia Humerez, na abertura encontro, que contou com a presença do presidente do Cofen, Manoel Neri, e as pesquisadoras Beth Sandagorda e Esperanza Morales. “A desconstrução da Reforma Psiquiátrica é parte do desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. Não podemos permitir que, por interesses escusos de seus administradores, renasçam os manicômios”, afirmou, sob aplausos, o presidente do Cofen, Manoel Neri.

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