‘Há um mês não vejo minha filha’: longas jornadas, baixos salários e solidão

Com medo de infectar familiares, muitos profissionais de enfermagem se isolaram

17.05.2020

Mulheres são 86% dos profissionais de enfermagem no Brasil. Foto: CARLOS JASSO/REUTERS

Braulita Braga está há um mês e meio sem ver a filha, Luize.

Desde que a pandemia de covid-19 chegou à cidade de Fortaleza, a enfermeira está isolada da família — inclusive dos pais, com quem costumava almoçar sempre que os horários pouco convencionais da profissão permitiam.

Com 20 anos de experiência como intensivista, trabalhando dentro de UTIs, ela se divide entre dois hospitais da rede privada na capital cearense.

Foi Luize, que completou 17 anos no último dia 25 de abril, que decidiu se mudar temporariamente para a casa “da mãezinha e do paizinho”, como chama os avós, para poupar a mãe de mais uma preocupação.

“Eu sinto saudade… ela me liga às vezes chorosa. Fico com o coração pequeno, me dá uma certa angústia — mas ao mesmo tempo força, porque eu sei que tudo isso vai acabar. Precisa acabar.”

Braulita faz parte de um exército de mais de 1 milhão de profissionais de enfermagem que estão na linha de frente contra o novo coronavírus. Histórias como as dela têm se repetido com frequência durante a pandemia.

Com medo de infectar os familiares, muitos desses profissionais se isolaram e têm vivido nas últimas semanas uma mistura de angústia e solidão. À sobrecarga emocional — que vem do temor de ser infectado, da hostilidade por que muitos passam no transporte público ou mesmo em casa, pelo companheiro — se somam o esgotamento que vem do trabalho em si e, em muitos casos, a alta exposição ao risco representado pelo novo coronavírus.

Na estimativa mais recente do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), cerca de metade dos 2,3 milhões de enfermeiros, técnicos e auxiliares registrados no país estão atuando nos hospitais e unidades de saúde no combate à doença neste momento.

É o maior grupo de profissionais que lidam com a doença — para se ter uma ideia, há no Brasil, ao todo, cerca de 400 mil médicos.

Os profissionais de enfermagem são em sua maioria absoluta mulheres — 86,6% do total, de acordo com a pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil, realizada em 2015 pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.

A predominância tem sido destacada pela Organização Mundial do Trabalho (OIT) em seus últimos relatórios de acompanhamento da pandemia de covid-19 por conta da inserção desse grupo no mercado de trabalho.

São as mulheres muitas vezes as responsáveis pela criação dos filhos — quando estão separadas ou mesmo juntas dos companheiros. Com frequência, elas também acabam assumindo a maior parte das tarefas domésticas.

Segundo a OIT, as mulheres gastam em média quase 4 horas e meia por dia em chamados “trabalhos não remunerados” — o cuidado com a casa e com a família, por exemplo —, enquanto os homens despendem cerca de uma hora e 20 minutos nessas mesmas funções.

Menos de dois salários mínimos – No Brasil, além da dupla ou tripla jornada, os profissionais de enfermagem também convivem com baixos salários.

Mais de 60% ganham menos de R$ 2 mil por mês (62,2%) e mais de um terço (38,7%) têm jornadas superiores a 41 horas semanais. Cerca de 3,5% recebem mais de R$ 5 mil por mês.

“A questão da remuneração me chamou atenção — absolutamente fora de qualquer padrão ético que pudesse ser aceitável”, diz a pesquisadora da Fiocruz Maria Helena Machado, coautora do trabalho publicado em janeiro deste ano em que constam os dados sobre os salários da categoria.

“E não há muita diferença entre quem é formado e quem tem nível médio ou técnico”, acrescenta a socióloga, que coordenou o Perfil da Enfermagem no Brasil e estuda as profissões ligadas à saúde há mais de 20 anos.

Os profissionais da enfermagem assistiram a um processo de achatamento salarial nas últimas décadas em uma magnitude que os colegas médicos, odontólogos e fisioterapeutas não experimentaram, acrescenta ela.

As razões para isso vêm da própria estrutura da carreira. O fato de concentrar um enorme contingente de trabalhadores — que poderia aumentar o poder de barganha da categoria — muitas vezes joga contra no momento da negociação de reajustes.

No caso do setor público — o maior empregador, englobando cerca de 55% dos profissionais da área —, os gestores municipais e estaduais alegam com frequência que aumentos salariais mais expressivos não cabem nos cofres públicos.

No Brasil, mais de 10 mil profissionais de enfermagem foram afastados com covid-19. Foto: JULIEN WARNAND/EPA

A isso se une o fato de a profissão ser bastante “institucionalizada”, diz a pesquisadora. Ou seja, os profissionais de enfermagem dificilmente conseguem trabalhar fora dos hospitais e contornar a rotina de plantões e dos pagamentos “tabelados”.

A situação não se restringe ao Brasil. “É uma vocação da América Latina pagar mal os enfermeiros”, ressalta Maria Helena. Na Europa e nos Estados, acrescenta, o diferencial de rendimentos entre médicos e enfermeiros é significativamente menor.

Como resultado, grande parte dos profissionais da enfermagem no país tem dois ou três empregos e faz jornadas semanais que vão muito além das 40 horas.

Altas taxas de infecção – Até o dia 6 de maio, o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) contabilizava mais de 10 mil enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem afastados por covid-19 no país.

As mortes chegam a 88, o dobro do registrado na Itália.

Para a instituição, os números refletem a escassez de equipamentos de proteção individual para os profissionais. Nas últimas semanas, o Cofen recebeu milhares de denúncias de todo o país.

Uma delas veio de uma enfermeira em Campinas (SP) que vinha recebendo uma máscara cirúrgica por turno de trabalho — as máscaras comuns devem ser trocadas de duas em duas horas ou quando ficarem úmidas.

“O avental também não tinha a gramatura apropriada para evitar que as gotículas passassem”, diz ela, que trabalhava em um serviço de ambulâncias e, após se queixar das condições de trabalho, foi desligada da empresa.

A entidade chegou a entrar com ações civis públicas para garantir afastamento de profissionais da rede pública e privada que estavam em grupo de risco e lidavam diretamente com pacientes infectados.

Mesmo quem conta com todo o aparato adequado de EPI, contudo, tem vivido uma rotina de angústia.

“Na hora de tirar é uma tensão, porque a hora da contaminação é quando a gente tira os EPIs”, diz Braulita.

Dias depois de conversar com a reportagem, a enfermeira foi afastada com sintomas levas de covid-19 e espera para fazer o teste diagnóstico.

“As pessoas precisam se conscientizar da gravidade do problema. O que nós estamos vivendo é uma pandemia, gente. Fiquem em casa, quem puder. A doença hoje não escolhe idade, não são só os idosos que adoecem. A gente está perdendo tanta gente nova por falta de cuidados, por falta de conhecimento, às vezes por não querer acreditar que tudo isso está acontecendo”, desabafa Braulita.

“Fiquem em casa. Não é fácil pra vocês, mas também não é fácil pra gente que está na linha de frente”, conclui.

Acessem a reportagem no site BBC Brasil.

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