Heróis do Samu: Enfermeiros narram resgates no litoral de São Paulo

Ilhados em plantões, enfermeiros e técnicos prestaram assistência às vítimas da chuva. Ambulância virou hospital no litoral norte de São Paulo

02.03.2023

Bebê Davi, prematuro, nasceu em casa durante os deslizamentos e recebeu primeiros cuidados de Miriam, no SAMU

Enquanto a chuva alagava cidades e deslizamentos soterravam casas e estradas, bebês nasciam no litoral norte de São Paulo. Enfermeiros e técnicos do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU 192), ilhados em seus plantões, contam como foi prestar assistência durante a emergência, que deixou 65 óbitos. Sem água e luz nas bases, sem acesso a hospitais, foi preciso contar com a técnica, a calma e a coragem para o resgaste e a assistência.

A profissional Miriam Silva, que é enfermeira graduada e concursada como auxiliar de Enfermagem no SAMU, estava de plantão em Maresias quando a tempestade começou. E não parou por toda à madrugada. Souberam de barreiras na estrada, mas, sem luz e internet, ainda não tinham noção da gravidade dos deslizamentos, até a chegada inesperada de um bebê.

“Oito horas da manhã, o bombeiro apareceu na base, com a mãe e a criança. Ela tinha acabado de parir o bebê na casa dela, porque não conseguia chamar ninguém, por celular, por nada. Cortou o cordão umbilical com uma tesoura da casa e saiu, ainda com a placenta dentro, desesperada, ela e o marido, porque sabiam que o neném era prematuro. Conseguiu carona em uma caminhonete até o posto do bombeiros e a trouxeram ao SAMU”, conta Miriam.

Ambulância virou hospital – “Eu atendi a mãe e o bebê na ambulância. Não tinha para quem ligar, ninguém sabia que ela estava comigo. Não tinha para onde levar”, conta. “Fiz os primeiros cuidados com o bebê, clampeei [o cordão umbilical], coloquei fralda. Observei que ele estava um pouco geladinho, aqueci. Aspirei. E nada de subir a saturação”, afirma.

Nesse intervalo, a placenta da mãe dequitou. “Com a mãe estava tudo bem, sangramento normal, útero normal. O problema era com o bebê. Não aceitava mamar, não subia a saturação. Eu não tinha mais recursos para atender, sabia que ele precisa ser examinado no hospital”, conta. “Fiquei com eles, enquanto esperava algum contato, vendo se o bombeiro tinha êxito com o helicóptero”. “A gente não tinha nem o que oferecer para eles, que ficaram com a gente o dia inteiro. Um dos condutores conseguiu leito com bolacha”. Miriam conseguiu, entreos turistas, ginecologista e pediatra que voluntariamente continuaram o atendimento ao bebê Davi, prematuro com idade estimada entre 30 e 33 semanas.

Com colaboração das coordenações de Enfermagem de outros municípios, foi improvisado um pronto atendimento

O enfermeiro Jonatha Oliveira também atendeu um recém nascido, indígena, e sua mãe, após o parto na aldeia durante a tempestade. “Os dois estavam ruins. A puérpera desidratada, a criança hipoativa. A gente conseguiu prestar a primeira assistência e remover os dois para Bertioga”, conta.

Sem rendição, sem comunicação – Morador da baixada santista, Jonatha conta que ainda na estrada, a caminho do plantão, começou a tomar ciência da gravidade do ocorrido. “Eu e condutor fomos render uma equipe que já estava há 48h. Aí eu me dei conta de que não teria mais rendição. Não tinha outro profissional que morasse para o lado de cá do deslizamento”, afirma o enfermeiro, que ficou 72h em ininterruptas de plantão. “Uma coisa que dificultava muito era a comunicação. Ficamos sem rede, mesmo o wifi da base não funcionava durante a maior parte do dia”, conta.

O primeiro atendimento foi uma vítima de AVC, 92 anos, cardiopata. O local estava inacessível por estrada. “Pegamos um trilha bem difícil, com bastante lama, bambuzal. A gente conseguiu acessar a casa desse morador. Conseguimos remover, graças a Deus ele estava estável. A gente colocou ele em uma prancha rígida e conseguiu retornar numa trilha alagada. Foram 3h de atendimento, mas chegamos à estrada, onde ele foi removido de helicóptero para a cidade de São Paulo”, narra Jonatha.

O enfermeiro conta que, devido às dificuldades de remoção e à necessidade de manter a ambulância disponível, foi montado um mini pronto-socorro, com monitores equipamentos cedidos por outras prefeituras, para atender situações menos graves. Duas médicas que estavam na região a turismo também se voluntariaram. “A união e a colaboração das equipes de Enfermagem de outros municípios com São Sebastião foi algo fantástico. Tivemos apoio das prefeituras, São Vicente, Bertioga, Santos, sempre com envolvimento da coordenação de Enfermagem”

Enfermeiro Marcelo Álvares caminhou por 3h, levando turistas ilhados, para chegar até a base de atendimento

Cinco dias de plantão – “Foi muito triste ver toda essa situação, uma cena de guerra mesmo”, conta Marcelo Alvares, do SAMU de São Sebastião há 15 anos. “Fomos acionados no sábado por volta das 22h, por uma ocorrência em Caraguatatuba. No caminho já estava um temporal, árvores caídas. Quando fomos retornar, a estrada já estava obstruída a estrada. Passamos a noite no alto da Serra, com a ambulância avançada presa”, conta Marcelo, que caminhou 3 horas, acompanhado de turistas, até chegar a base para prestar atendimento.

“Foi montada uma estrutura gigante. A remoção era somente por helicóptero, não tinha como prestar socorro por terra. Muita, muita gente ferida”, narra o enfermeiro, que ficou cinco dias em atendimento. “Entrei no sábado e saí na quinta-feira de manhã”.

A parte que a gente não esquece – Técnico de Enfermagem na Secretaria Municipal de Saúde há 30 anos, Charles da Silva usou um barco emprestado para resgate. “Já presenciei outros desmoronamentos, mas como esse de agora, não. A gente se sente impotente de não pode ajudar tanto quanto a gente queria, mas tive o privilégio de conseguir tirar sete pessoas”, conta.

Apesar do resgate heroico, Charles sente culpa. “Não consegui chegar até a Barra do Sahy, onde aconteceu tudo, por vários motivos barreira”. “A parte que a gente não esquece é ter que carregar corpos, na viatura do SAMU, para ser transportado ao IML, onde havia crianças e adultos, e o desespero das pessoas no local”, diz. “Vou levar para sempre isso aí. Eu prefiro guarda as coisas boas, mas essa a gente não consegue esquecer tão cedo. Agradeço por ter participado, agradeço a Deus, aos amigos que estão comigo”.

Enfermagem Solidária – As chuvas no litoral norte de São Paulo entre 18 e 19 de fevereiro foram as maiores registradas no país, segundo dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). As tempestades provocaram deslizamentos de encostas, alagamentos, quedas de árvores e falta de luz. O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) enviou Equipe de Resposta rápida que, junto com o Coren-SP, mapearam a situação da Enfermagem e prestaram assistência aos profissionais.

Especialistas do Programa Enfermagem Solidária (Consems/Cofen) vão atender presencialmente a população afetada na próxima semana, em parceria com a Diretoria de Saúde Mental da Secretaria de Saúde de São Sebastião. Quatro especialistas irão realizar atendimentos, de segunda a sexta-feira (6 a 10/3), com voluntários de diversas especialidades. “As chuvas torrenciais e deslizamentos trazem, além das perdas materiais, a sensação de vulnerabilidade, que pode ser traumática”, explica a coordenadora do Enfermagem Solidária, Dorisdaia Humerez.

 

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