Mortalidade materna provoca nova discussão entre esferas de governo

Risco enfrentado pelas mulheres e urgência para resolver violação de direitos são colocados em segundo plano

28.04.2022

Um grave problema de saúde pública, uma violação dos direitos da mulher e uma tragédia familiar. Não é de hoje que o Brasil enfrenta números vergonhosos de mortalidade materna. Vergonhosos, sim. Porque de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a maior parte das mortes pode ser evitada. A situação, que já era muito preocupante, agravou-se durante a pandemia da Covid-19.

O número de nascidos vivos no Brasil caiu ao longo dos últimos três anos. Mesmo assim, as mortes de mulheres ligadas à gestação e parto dispararam. Números do Painel de Monitoramento de Mortalidade Materna mostram 2.787 óbitos maternos declarados em 2021. Os dados são preliminares. Em 2020, eram 1.964, e em 2019, 1.575.

Dados deste painel mostram que no ano passado 203 meninas e adolescentes de 10 a 19 anos tiveram a morte associada a causas ligadas ao parto. Quando se consideram todas as faixas etárias, a maior parte das vítimas está em mulheres pardas. Foram 1.381 mortes.

Secretário de Atenção Primária à Saúde, Raphael Câmara Medeiros Parente afirma que em alguns estados no ano passado a taxa de mortalidade materna chega a 100 casos por 100 mil nascidos vivos. “Não podia ficar como turista, vendo a paisagem passar”, disse. Uma portaria publicada no início deste mês criou a Rede de Atenção Materna e Infantil. Um desfecho polêmico para um processo que começou em meio a desavenças e com uma boa dose de defesa de corporações. E mais uma vez, os direitos da mulher se tornam também motivo para disputas políticas.

A reformulação da estratégia para enfrentamento da mortalidade materna começou a ser discutida em 2018, quando já eram inaceitáveis os indicadores de mulheres que morreram por causas relacionadas à gestação e parto. A discussão era feita por representantes do Ministério da Saúde e secretários estaduais e municipais de saúde. Havia um consenso que regras existentes precisavam ser aprimoradas.

O grupo reconhecia ser urgente a melhora da qualidade do atendimento e adoção de estratégias para identificar e encaminhar mulheres em situação de risco para ambulatórios especializados. Era preciso ainda criar mecanismos para que tais centros funcionassem de forma adequada e uma revisão na lógica da distribuição de recursos.

Em 2019, as negociações foram interrompidas. A justificativa, na época, é que havia outros temas a serem discutidos de forma prioritária. A pausa se prolongou por causa da pandemia e os problemas se agravaram. A retomada dos entendimentos foi feita por provocação de representantes de secretários estaduais e municipais de saúde. O desdobramento, no entanto, não poderia ter sido mais ruidoso.

Inicialmente, o Ministério da Saúde apresentou proposta vinculando a presença de médicos obstetras e pediatras no programa de saúde da família. Algo considerado impossível de ser colocado em prática, diante da falta de profissionais. Mais que isso, havia também a constatação de que outros profissionais eram necessários para atendimento. O gesto do ministério foi classificado como tentativa de agradar a classe médica.

Outro problema grave era a falta de consenso entre as três esferas de governo sobre a proposta naquele momento apresentada. As políticas, quando lançadas, devem ser acordadas tanto pelo Ministério da Saúde quanto por representantes de secretarias estaduais e municipais. Mais do que uma formalidade, a regra é considerada um dos alicerces do Sistema Único de Saúde (SUS).

Diante dos protestos, uma nova rodada de discussão foi adotada em fevereiro. O secretário de Atenção Primária à Saúde afirma que o Conass (que reúne secretários estaduais de saúde) e o Conasems (que reúne secretários municipais) abandonaram os entendimentos aos 90 minutos de jogo. Os conselhos, no entanto, garantem que o texto que havia sido acertado nas reuniões conjuntas foi alterado e publicado sem discussão. De acordo com representantes, a regra do consenso foi novamente desrespeitada.

Entre os pontos criticados por secretários está a criação de uma câmara técnica assessora. O receio é que a discussão sobre temas importantes, que deveria ser norteada por representantes do SUS, seja influenciada por questões de interesse de corporações médicas. Os secretários reivindicam ainda a inclusão dos ambulatórios de atenção especializada, essencial para o atendimento das gestantes de risco.

Eles avaliam como necessária, também, a previsão de ações para crianças de até dois anos. Na norma, batizada de Rede de Atenção Materna e Infantil, boa parte das ações está voltada apenas para bebês até o 28º dia. Também são contrários à regra que retira a habilitação dos Centros de Parto Normal.

O professor titular da Universidade Federal Fluminense e coordenador da Comissão Nacional de Saúde da Mulher do Conselho Federal de Enfermagem, Herdy Alves, avalia que a norma traz alguns retrocessos, sobretudo as limitações para atuação dos Centros de Parto Normal. “A discussão está muito centrada apenas no parto, no procedimento. Pouco se fala sobre a necessidade de esclarecimento da mulher, do atendimento humanizado e, sobretudo, da qualidade da assistência durante o pré-natal”, disse ao JOTA.

Uma das críticas de especialistas é que a política publicada pelo Ministério da Saúde possa incentivar as cesáreas. Os números dessa cirurgia no país são considerados alarmantes e estão associados ao baixo peso de bebês ao nascer. Para a OMS, a cesárea, embora essencial em alguns casos, pode colocar a mulher e o bebê em risco desnecessário quando feita sem indicação.

Apesar do entendimento da OMS e de especialistas em saúde pública, o secretário de Atenção Primária à Saúde, no entanto, afirma não haver problemas caso a tendência de cesáreas seja confirmada. O argumento é que mulheres de classe média já marcam esse tipo de parto. “Mulheres pobres podem marcar também.” Ele assegura que o alto índice de partos cesáreos não influencia a taxa de mortalidade materna. “Essas mortes estão ligadas a sangramento, à hipertensão.” O secretário também descarta as críticas feitas pelo conselho de enfermagem. “A enfermagem nunca teve tanto direito e tanta função.”

Para o secretário do Ministério da Saúde, o ponto mais forte do projeto é a reserva de mais recursos para as ações. Dos R$ 900 milhões anuais, a estratégia passará a ter R$ 1,6 bilhão. A dúvida que resta, no entanto, é como esses recursos serão usados se não houver consenso. Sobretudo, se serão destinados para ações que estão mais associadas a atendimentos hospitalares, em prejuízo para ações ambulatoriais ou atividades com multiprofissionais, que quando bem feitas são essenciais para prevenção de casos graves.

Câmara Medeiros afirma que as críticas à proposta são fruto de divergências políticas. Secretários estaduais e municipais, por sua vez, avaliam que as alterações realizadas podem colocar em risco uma proposta que foi discutida de forma detalhada, com participação de técnicos e de acordo com regras do SUS. Um representante do Cofen, por sua vez, afirma que a proposta limita acesso das mulheres a um lugar que permita parto normal, de acordo com diretrizes da Conitec e formulado a partir de critérios científicos.

Nesta semana, em cerimônia realizada no Palácio do Planalto, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, afirmou: “Quem aqui acredita em cegonha?”, numa alusão ao antigo programa, batizado de Rede Cegonha. Mais do que a simples mudança de um nome ou da falta de entendimento entre as três esferas de governo, a discussão deixa claro o quanto o real problema – o risco enfrentado pelas mulheres e a urgência para resolver uma violação constante de direitos – é colocado em segundo plano.

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