‘Ele está incentivando a baderna’: o desabafo de enfermeira

Reportagem do BBC Brasil ouviu relato de uma enfermeira, após declaração de Bolsonaro

13.06.2020

Hospital de Campanha do Anhembi, em São Paulo, tem capacidade para 1,8 mil leitos

Na tarde de 4 de junho, a enfermeira Carla*, que trabalha no Hospital de Campanha do Anhembi, em São Paulo, notou uma movimentação estranha enquanto voltava do horário de almoço.

“Havia muitas pessoas na porta. Observei muita gente entrando no hospital sem colocar a roupa própria para proteção”, relata a profissional de saúde à BBC News Brasil.

Pouco depois, ela descobriu que se tratava de uma “invasão” de deputados estaduais de São Paulo ao hospital. Mesmo sem autorização, eles tentavam entrar no local para, segundo os parlamentares, “fiscalizar” e “apurar possível má utilização de recursos públicos”.

“Eles agiram como se os profissionais de saúde fossem criminosos. Nos sentimos desrespeitados. Foi uma situação vexatória. Não poderiam fazer aquilo. É importante fiscalizar o uso de dinheiro público, mas aquela não era a forma correta para fazer isso”, declara Carla.

A profissional de 45 anos, sendo 22 deles atuando na enfermagem, classifica o momento como a situação mais vergonhosa e desrespeitosa que viveu na linha de frente do combate ao novo coronavírus.

Ela confessa que teme passar por situação semelhante nos próximos dias, após ler uma declaração que o presidente Jair Bolsonaro deu na noite da quinta-feira (11). Durante uma live, ele incentivou seus seguidores a invadirem hospitais e filmarem o que encontrarem no interior.

“Tem hospital de campanha perto de você, hospital público, arranja uma maneira de entrar e filmar. Muita gente está fazendo isso e mais gente tem que fazer para mostrar se os leitos estão ocupados ou não. Se os gastos são compatíveis ou não”, disse Bolsonaro, sem acrescentar qualquer prova de que os recursos tenham sido mal utilizados.

Também sem apresentar qualquer prova, o presidente insinuou que os números da covid-19 estão sendo manipulados por prefeitos e governadores para “ganho político”.

Em nota, a Associação Paulista de Medicina criticou o incentivo de Bolsonaro para que as pessoas invadam e filmem unidades de saúde. “Hospitais são áreas de circulação restrita, com fluxo de pessoas orientadas para garantir rapidez, eficiência, segurança e privacidade dos pacientes assistidos. Todas as informações necessárias ao acompanhamento dos casos internados é sempre imediatamente disponível às autoridades de saúde”, diz a entidade.

A invasão em SP

Carla considera que a declaração de Bolsonaro pode dificultar ainda mais a batalha contra o novo coronavírus no Brasil, que tem mais de 41 mil mortes. “Ele está incentivando a baderna, o desrespeito ao próximo e ao profissional de saúde”, diz.

Ela afirma que as apurações sobre supostas fraudes nas gestões de hospitais devem ser feitas por autoridades responsáveis, como a Polícia Federal. “As pessoas não podem invadir um hospital, sem qualquer permissão para filmar o local e os pacientes”, declara a enfermeira, que ressalta que não é permitida a entrada de pessoas sem autorização em hospitais.

“Um dos grandes problemas é que muitas pessoas podem, como no caso dos deputados, filmar e mostrar apenas o que lhes interessa. Eles filmaram os rostos dos pacientes e causaram muito constrangimento. Depois, foram para áreas desabilitadas e compartilharam como se o hospital estivesse vazio”, diz.

A invasão ao hospital foi feita pelos deputados Marcio Nakashima (PDT), Adriana Borgo (Pros), Coronel Telhada (PP), Leticia Aguiar (PSL) e Sargento Neri (Avante) — os quatro últimos são apoiadores do presidente. Pessoas ligadas a eles também participaram da ação.

“Estávamos trabalhando normalmente e, de repente, chegaram essas pessoas como se estivesse acontecendo uma guerra mundial. Eles invadiram, falaram alto e desrespeitaram a todos. Foi uma situação muito ruim. Eles pensam que podem fazer isso por conta dos cargos que possuem. É assustador isso”, afirma.

Os parlamentares afirmavam que o hospital estaria “vazio” e disseram que precisavam fiscalizar supostas irregularidades. A unidade de saúde é administrada pela Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) e pelo Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde (IABAS).

O IABAS é investigado por supostas irregularidades em contratos para administrar hospitais em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde também era responsável por hospitais de campanha. A Organização Social (OS) é um dos alvos de uma apuração sobre desvio de dinheiro da saúde, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Os representantes do instituto negam qualquer irregularidade.

“Eles viram pacientes em diversas áreas. Mas há partes do hospital em que não há pacientes, pois a capacidade é para 1,8 mil leitos. As áreas são abertas conforme a chegada de pacientes, porque buscamos otimizar o local”, explica Carla.

“Os leitos ficam vazios e sem colchão quando não há muitos pacientes. Caso necessário, colocamos o colchão e colocamos as roupas de cama. O que alguns deles mostraram nos vídeos foi o esqueleto de um setor que estava sem pacientes naquele momento e disseram que todo o hospital estava vazio”, critica ela.

Depois da ação no Anhembi, os deputados criticaram o hospital de campanha. “O governo quer alugar leitos de hospitais privados e vemos esta estrutura inoperante”, disse Nakashima. Ele classificou a unidade de saúde como “um exemplo de má gestão dos recursos públicos”.

Após a invasão dos parlamentares, a Prefeitura de São Paulo disse, em nota, que os deputados filmaram áreas desativadas, que estão prontas para serem colocadas em funcionamento quando necessário. A gestão criticou a postura dos deputados e afirmou que eles filmaram pacientes sem autorização prévia, muitos durante o período em que estavam sendo higienizados em seus leitos.

Na data em que os deputados foram ao local, segundo a Prefeitura, 397 dos 1,8 mil leitos disponíveis no hospital estavam ocupados.

Riscos de invasões

Os profissionais de saúde temem que a prática de invadir hospitais para filmar os locais se torne comum, após as declarações de Bolsonaro. Nesta sexta-feira, segundo relatos do jornal O Globo, houve uma invasão no hospital Ronaldo Gazolla, em Acari, no Rio de Janeiro.

“Essa fala dele faz com que muitas pessoas deixem de acreditar nos profissionais de saúde. Quando o mandatário do país, que teoricamente teria as melhores informações, pede para as pessoas invadirem os hospitais, gera desconfiança em muitos. Muitos podem acabar acreditando nessa bobagem que ele fala”, afirma o médico intensivista José Albani de Carvalho, que atua em UTIs de quatro hospitais públicos de São Paulo.

Albani frisa que há grandes riscos de contaminação para as pessoas que entram em hospitais sem os devidos equipamentos de proteção. “Para uma pessoa entrar na UTI ou em enfermarias para pacientes com a covid, é preciso saber que todos os pacientes estão infectados. Os profissionais de saúde têm contato com esses pacientes estão devidamente paramentados com óculos, proteção facial, máscaras específicas e roupas adequadas”, ressalta.

“Uma pessoa que entra sem a devida proteção pode ser infectada e sair disseminando ainda mais o vírus”, acrescenta o especialista. Ele classifica a declaração de Bolsonaro como uma “tremenda imbecilidade”.

Carla também cita os riscos sanitários ao invadir uma área destinada a pacientes com a covid-19 sem os devidos aparatos. “Os deputados, por exemplo, queriam entrar sem proteção. Foi necessário muita discussão até que eles usassem algo. O hospital é o local em que as pessoas estão em estado grave e a disseminação do vírus é muito grande, por isso muitos profissionais da saúde estão sendo infectados”, diz.

Ela admite que está com medo de que o hospital de campanha seja alvo de nova invasão nos próximos dias. “Com o incentivo do presidente, essa situação pode se repetir. É assustador pensar nisso. É como se todos os dias houvesse o risco de vivermos aquela situação de novo. Não queria ter passado por um momento tão constrangedor como aquele. Nos sentimos desrespeitados. Foi totalmente desagradável. Ficamos sem saber o que fazer”, declara.

“Os profissionais de saúde estão lá para cuidar dos pacientes. As questões políticas não devem ser tratadas dentro do hospital”, diz Carla.

*Nome alterado para preservar a identidade da enfermeira.

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